Memória

Porto Alegre perde o Cidadão Paulo José

Nascido em Lavras do Sul, ator recebeu o Título de Cidadão de Porto Alegre em 1999

Ator Paulo José recebe título de Cidadão de Porto Alegre proposto pela Vereadora Clênia Maranhão
Paulo José na tribuna da Câmara (Foto: Elson Sempé Pedroso/CMPA)

Faleceu nesta quarta-feira (11/8), aos 84 anos, o ator gaúcho Paulo José, um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira e Cidadão de Porto Alegre. Ele enfrentou por quase 30 anos o Parkinson e morreu em decorrência de uma pneumonia, no Rio de Janeiro. O ator construiu uma relevante trajetória no teatro, no cinema e na televisão. Iniciou no teatro, no final da década de 1950, quando ainda morava em Porto Alegre, e realizou seu último trabalho na televisão em 2014, em uma participação na novela Em Família

Paulo José Gomes de Souza, nascido em Lavras do Sul, recebeu o Título Honorífico de Cidadão de Porto Alegre no dia 17 de agosto de 1999, por proposição da então vereadora Clênia Maranhão. Durante a homenagem, realizada no Plenário Otávio Rocha, ele destacou suas memórias da cidade em discurso que emocionou o público presente: “Eu me lembro do meu primeiro encontro com Porto Alegre. A família vinha de Bagé, de carro, era noite, eu cochilava no banco traseiro. Acordei quando entrávamos na Avenida Borges de Medeiros, ao lado da Avenida Praia de Belas, e aí eu vi imponente, monumental, maior do que a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora e a de São Sebastião juntas, mais alto do que a Ponte Seca, mais bonito do que a casa do meu avô, o Viaduto Otávio Rocha. Depois, pela vida afora, vi outros espaços monumentais impressionantes a Piazza San Marco, Veneza, o Arco do Triunfo, o Coliseu de Roma, o Parlament House com o Big Ben, mas nenhum deles me fez o coração disparar como aquela visão dos meus oito anos.”

Finalizou seu discurso afirmando: “Eu me lembro de que o Viaduto Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento. Era guri, de Lavras, chegando nesta Cidade grande. Esta Cidade me acolheu. Nela cresci, me fiz homem, aprendi ofício. Devo isso tudo a Porto Alegre. Hoje realizo uma fantasia de adolescência: ser porto-alegrense. Hoje, eu sou um cidadão da Cidade que tem o Viaduto Otávio Rocha, orgulhosamente”. 

Confira a íntegra do emocionante discurso de Paulo José no recebimento do Título de Cidadão de Porto Alegre:

Eu me lembro do meu primeiro encontro com Porto Alegre. A família vinha de Bagé, de carro, era noite, eu cochilava no banco traseiro. Acordei quando entrávamos na Avenida Borges de Medeiros, ao lado da Avenida Praia de Belas, e aí eu vi imponente, monumental, maior do que a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora e a de São Sebastião juntas, mais alto do que a Ponte Seca, mais bonito do que a casa do meu avô, o Viaduto Otávio Rocha. Depois, pela vida afora, vi outros espaços monumentais impressionantes a Piazza San Marco, Veneza, o Arco do Triunfo, o Coliseu de Roma, o Parlament House com o Big Ben, mas nenhum deles me fez o coração disparar como aquela visão dos meus oito anos. O Viaduto Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento.

Eu me lembro que o Pão dos Pobres ficava nas margens do Guaíba, lá onde a Cidade acabava. Eu me lembro que a lancheria das Lojas Americanas era o ponto chique da Cidade. Eu me lembro que tinha até “banana split”. Eu me lembro que eu sabia de cor todas as transversais da Avenida Independência, do Colégio do Rosário a Praça Júlio de Castilhos: Rua Barros Cassal, Rua Thomas Flores, Rua Garibaldi, Rua Santo Antônio, Rua João Telles. Eu me lembro da Pantaleão Teles, da Cabo Rocha, American Boite, Maipu, Gruta Azul. Eu me lembro do conjunto Norberto Baldauf, da Orquestra Espetáculo Cassino de Sevilha, do Conjunto Farroupilha, dos Quitandinhas Serenades: (Cantarola.) “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito ainda mora...”

Lembro da tristeza da minha mãe quando emprestei o violão do meu irmão para um baiano que estava passando uns tempos aqui em Porto Alegre. Eu me lembro que o meu violão nunca mais voltou e que o baiano se chamava João Gilberto.

Lembro do Hino Rosariense. (Cantarola.) Lembro que Maria Della Costa era garota da capa da revista O Globo, e tinha as pernas mais lindas do mundo. Lembro dos festivais Tom e Jerry nas manhãs de domingo no Cinema Avenida, das matinês do Cinema Vitória, do Cinema Rex, Roxi, Imperial, Cacique. Lembro do Mezanino do Cinema Cacique, que servia a última novidade em gelados o Peach Melba. Lembro que todo o mundo detestava os filmes de Cecil B. de Mille, exceto o público.

Lembro que no abrigo dos bondes da Praça VX, podia-se beber o caldo da salada de frutas, sem frutas, apenas seus vestígios, aquela água era néctar dos deuses. Lembro do Vicente Rao, do Bataclan, do Brique. Do Belchior, do Sr. Joaquim da Cunha, do Farolito e da China Gorda. Lembro que pela margem direita eram o Javari, Juruá, Purus, Madeira, Tapajós, Xingu; e pela esquerda o Japurá, Negro, Trombetas, Paru e Jari. Eu me lembro que meus professores diziam que ensinamentos como esses seriam de grande utilidade para a vida.

Lembro do irmão Ary, professor de Biologia, recusando-se a falar da teoria de Darwin: “Quem quiser que descenda do macaco, eu descendo de Adão e Eva”. Lembro que ele nos preparava para o vestibular de Medicina. Eu lembro do Pervitin que a gente tomava para passar a noite estudando e tirava nota ruim no dia seguinte. Lembro do rodouro metálico e seu jato gelado que fazia tudo girar. Lembro do gin fizz, do hi-fi, do Alexander, da mistura de Coca-Cola com cachaça que levava o nome apropriadíssimo de Samba em Berlim.

Lembro do footing da rua da Praia, onde a gente exibia a camisa volta-ao-mundo, de nylon, e que diziam que iria revolucionar o vestuário masculino. Lembro das calças de brim-coringa Far-West. Lembro que a deusa da minha rua era a Maria Tereza Goulart, que não era ainda Goulart. Ela morava no edifício Glória e recebia visitas misteriosas de um João, este, sim, Goulart, que era invejado por toda a garotada da Barros Cassal.

Eu me lembro do tempo em que futebol se jogava com goleiro, com dois beques, três na linha média e cinco no ataque e que, em geral, faziam-se gols. Eu me lembro do time do Inter, imbatível, nos anos 50: La Paz, Florindo e Oreco; Paulinho, Salvador e Odorico; Luizinho, Bodinho, Larry, Jerônimo e Canhotinho.

Eu me lembro de um tempo sem malícia, quando o Estádio dos Eucaliptos torcia, gritando em coro: Co-Co-Colorado, Co-Co-Colorado, Co-Co-Colorado. Eu me lembro do Café Andradas, onde a gente ía matar aula e encontrava o Henrique Fuhro. O Abujamra, que anunciava tragicamente: “O homem é uma paixão inútil! Mais um café, Macedo”. Eu me lembro do Bar Matheus, na Praça D’Alfândega; da Pavesa do Treviso, da cadeira pendurada na parede, onde sentou Chico Viola. Da sopa de mocotó levanta-defunto, do Mercado Público; do sanduíche aberto do Bar Líder, daquela mostarda amarela; do Galeto do Marreta e, por fim, o cachorro quente da Praça do Colégio N. Sra. do Rosário, sem favor nenhum, o melhor do mundo.

“O sabonete Cinta Azul / tem o prazer de apresentar / um novo filme de caubói / Bat Masterson, Bat Masterson”.

“Phimatosan, / quando você tossir, / Phimatosan, / se a tosse repetir”.

“Ela é linda, aah! / É noiva, Ooh! / Usa Ponds, Aaah!!

Eu me lembro do desodorante para privadas Desodor: “libera o ambiente dos odores estranhos”; do Detefon, do espiral Boa-Noite, da cera Parquetina, da creolina Cruswaldina, do formicida Tatu. Eu me lembro que o Jeca Tatu tinha verminose, era pálido, maltrapilho, preguiçoso e roubado pelo patrão. E era um herói nacional... Eu me lembro das missas rezadas em latim, dos padres de batina e do seu indisfarçável sotaque da Colônia: “Caríssimos irmãos em N. S. Jesus Cristo! Naquele tempo, vindo Jesus com os seus Discípulos...”

Eu me lembro de Glostora, da Antisardina:  “O segredo da beleza feminina”; Odorono, Cashmere Bouquet: “o aristocrata dos produtos femininos”; Lusoform Primo, poderoso desinfetante contra frieiras, pé-de-atleta, CC - cheiro de corpo, mau hálito e após barba. Eu me lembro de um perfume da fábrica Colibri, “Água de Cheiro Amor Gaúcho.” Eu me lembro de Ildo Meneghetti, o candidato invencível, e me lembro de sua quase absurda honestidade, quando declarou: “Meu maior erro foi ter derrotado Alberto Pasqualini, ele tinha um plano de governo e eu, não”.

Eu me lembro do 24 de agosto de 54. A morte de Getúlio se alastrando pela Cidade, incendiando a Rádio Farroupilha, empastelando o “Diário de Notícias”, destruindo a sede da UDN, depredando tudo que tivesse nome americano: o Consulado, as Lojas Americanas, até a American Boite ... Eu me lembro do P.F Gastal, criador do Clube de Cinema e que me apresentou a alguns gênios da tela. Um deles, contava Gastal, se apresentou para uma platéia de apenas quatro pessoas, em Berlim, dizendo: “Sou ator de teatro, cinema; escrevo contos, programas de rádio, tevê, dirijo filmes, peças; sou ventríloquo, ilusionista, mágico. Pena eu ser tantos e vocês, tão poucos. Meu nome é Orson Welles." Eu me lembro do Teatro de Equipe, na General Vitorino; do Teatro de Belas Artes, na Sr. dos Passos e da Confeitaria Atlântica, na Praça Dom Feliciano, ponto de encontro e desencontros dos artistas; do Theatro São Pedro.

Eu me lembro que nós, Luiz de Matos, Ivete Brandalise, Peréio, Ilda Maria, Mário de Almeida e tantos outros trabalhávamos como diretores, cenógrafos, figurinistas, maquiadores, contra-regras. Eu me lembro que, às vezes, eu tinha a sensação de que éramos tantos e vocês, tão poucos ... Mas, eu me lembro que “qualquer prazer me diverte e qualquer morena me interte”!

Eu me lembro que a Livraria do Globo era uma loja que vendia livros... Eu me lembro do Loxas, do Janjão, do Sunda ... Mas, sobretudo, eu me lembro do Mário, aquele ... Eu me lembro que: “Não adianta bater, que eu não deixo você entrar”. Eu me lembro da Emulsão de Scott; do Calcigenol Irradiado; do Peitoral de Angico Pelotense; da Pomada Minâncora, das Pílulas de Vida do Dr. Ross: “fazem bem ao fígado de todos nós”; do Regulador Xavier, “vive melhor a mulher”; do Pó Pelotense; do vinho reconstituinte Silva Araújo: “V de vida, R de resistente, S de saúde e A de alegria”. Do Rum Creosotado e dos reclames dos bondes da Carris: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado, e, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite e salvou-o o Rum Creosotado”. 

Eu me lembro, sempre, de não confundir capitão-de-fragata com cafetão-de-gravata. Eu me lembro que até os craques da locução confundiam "alhos com bugalhos". Ernani Behs, a máxima voz da rádio Farroupilha, uma noite anunciou solenemente: “Transmitindo do alto do viadeiro Borges de Meduto...”. Eu me lembro que: Belarmino tinha uma flauta, a flauta do Belarmino, sua mãe sempre dizia: “toca flauta Belarmino”.

“Coelhinho, se eu fosse como tu, tirava a mão da boca e botava a mão ...

Coelhinho, se eu fosse como tu, tirava a mão da boca e botava a mão...”

Eu me lembro que: “Até a pé nós iremos, para o que der e vier...”. Eu me lembro de que não foi exatamente a pé, mas atravessando o Mundo, de avião, que o Grêmio conquistou o Campeonato Mundial de Clubes. E até os colorados se renderam ao show de bola do Renato, Mário Sérgio e demais heróis tricolores.

“Até o Japão nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos ...”

Eu me lembro que: “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar...”.

Eu me lembro do Programa Maurício Sobrinho, do Clube do Guri e de uma caloura que diziam ser a nova Ângela Maria. Eu me lembro que ela morava na Cidade Baixa e se chamava Elis Regina. Eu me lembro de uns versos:

 “Elis, quando ela canta me lembra um pássaro, / Mas não um pássaro cantando, /  Me lembra um pássaro voando”.

Eu me lembro de uns quintanares:

“olho o mapa da cidade / como quem examinasse / a anatomia de um corpo / (é nem que fosse o meu corpo) / sinto uma dor infinita / das ruas de porto alegre / onde jamais passarei... / há tanta esquina esquisita / tanta nuança de paredes / há tanta moça bonita / nas ruas que não andei / (e há uma rua encantada / que nem em sonhos sonhei...) / quando eu for, um dia desses, / poeira, poeira, / ou folha levada / no vento da madrugada, / serei um pouco do nada / invisível, delicioso / que faz com que o teu ar / pareça mais um olhar, / suave mistério amoroso, / cidade do meu andar / (deste já tão longo andar!) / e talvez do meu repouso...”

Eu me lembro de que o Viaduto Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento. Era guri, de Lavras, chegando nesta Cidade grande. Esta Cidade me acolheu. Nela cresci, me fiz homem, aprendi ofício. Devo isso tudo a Porto Alegre. Hoje realizo uma fantasia de adolescência: ser porto-alegrense. Hoje, eu sou um cidadão da Cidade que tem o Viaduto Otávio Rocha, orgulhosamente.

Agradeço à vereadora Clênia Maranhão, ao vereador Adeli Sell, à senhora Margarete Moraes, à senhora Sônia Dutra, por esta homenagem que me emociona, me toca no fundo do coração. Eu sempre lembrarei disso, sempre lembrarei, e me lembrarei. Obrigado!

 

Texto

Ana Luiza Godoy (reg. prof. 14341)

Edição

Carlos Scomazzon (reg. prof. 7400)