AUDIÊNCIA PÚBLICA

Câmara debateu uso da cannabis para fins medicinais

  • Audiência Pública sobre uso medicinal de cannabis
    Uso do princípio ativo da planta para fins medicinais foi discutido na noite desta quinta (Foto: Canva/Câmara de Curitiba)
  • Vereador Leonel Radde
    Vereador Leonel Radde (PT) (Foto: Ederson Nunes/CMPA)

A Câmara Municipal de Porto Alegre realizou, na noite de quinta-feira (16/12), audiência pública online que debateu o teor de três projetos de lei que estão em tramitação no Legislativo. Todos são de autoria do vereador Leonel Radde (PT). A proposta nº 178/21, que institui o Programa Municipal de Uso de Cannabis Para Fins Medicinais; a de nº 186/21, que cria o Projeto de Promoção e Incentivo a Pesquisas Sobre o Desenvolvimento e os Usos de Cannabis; e a de nº 181/21, que cria o Programa Farmácia Viva no Município de Porto Alegre. O encontro virtual foi coordenado pelo 1º vice-presidente do Legislativo, vereador Idenir Cecchim (MDB).

Leonel Radde (PT) disse que o debate trata das questões médicas, jurídicas e relatos de pessoas sobre uso terapêutico da cannabis. Afirmou que o tema está na pauta das Câmaras Municipais de Porto Alegre, Florianópolis e Curitiba. “Esperamos que se possa avançar o debate sobre uso medicinal da cannabis, ou da maconha, com reflexões sobre a  importância da pauta na saúde pública do país, levando informação a toda a população e quebrando preconceitos.”

Carla Ayres (PT), vereadora de Florianópolis, observou que é preciso reforçar a importância da discussão institucionalizada sobre o uso da cannabis medicinal que combata a criminalização existente há vários séculos, tanto para o uso recreativo como para os seus potenciais usos terapêuticos, para diferentes doenças, que tem trazido alento para famílias e pessoas, em todo o mundo, bem-estar que não deveria ser subjugado. Para ela, “é preciso entender e construir um caminho contra o preconceito, capaz de permitir o acesso a esse tipo de benefícios que a planta traz”. A parlamentar da capital catarinense disse que lá apresentou projetos similares para incentivo à pesquisa e distribuição no SUS, nas Unidades Básicas de Saúde, e que espera ver essa medida assertiva sendo aprovada nos três estados do Sul.

A parlamentar da cidade de Curitiba, Carol Dartora (PT), disse que é importante que seja democratizada a utilização da cannabis medicinal, “sem exclusividade para quem pode pagar pela importação, porque diversas doenças podem ser combatidas para melhorar a vida das pessoas que precisam do tratamento com essas plantas”. Ela ressaltou ainda que está encaminhando projeto de lei neste sentido ao Legislativo da capital paranaense.

Judicialização

A advogada Bianca Uequed defendeu o canabidiol para o tratamento de enfermidades. Ela relatou como obteve o primeiro habeas corpus “para que uma família de Canoas pudesse plantar e preparar o óleo completo”, que trouxe alívio para uma criança com síndrome de Dravet, doença genética rara, progressiva e incapacitante, também conhecida como epilepsia mioclônica grave da infância. A síndrome é acompanhada por déficits cognitivos, problemas motores e características do autismo.

Segundo ela, após obter a permissão para o cultivo e produção do óleo caseiro completo, que substituiu o industrializado sem o THC, o paciente não teve mais nenhuma crise convulsiva e nem internações hospitalares. Bianca disse que antes de pegar o caso, em 2015 era uma pessoa contrária ao uso, por desconhecimento, e que, a partir de então, devido às pesquisas que foram necessárias, se tornou defensora do uso sob prescrição e acompanhamento médico.
 
Bianca lamentou que, por falta de informação e pelos altos custos, muitas pessoas desconhecem os caminhos, ou não disponham de recursos para ajuizar ações nesse sentido. Por isso, sugeriu que “a organização de um maior número de entidades associativas tem importância nesse processo”. Por fim, disse que é preciso desfazer o preconceito dos pais de que estão dando droga para seus filhos. “É uma medicação fitoterápica eficiente para o combate de doenças como Parkinson, Alzheimer, câncer e fribromialgia”, assinalou.

Relatos de casos

A psiquiatra Márcia Gianlupi disse que iniciou a utilização da cannabis em 2017, motivada por um amigo que tem doença grave e que, com óleo de cannabis, minimizou sintomas. “Não teve efeito curativo, mas trouxe qualidade de vida e conforto ao paciente”. A médica disse que estudou sobre cannabis medicinal para entender os mecanismos de ação e ressaltou que seres humanos têm receptores de elementos da maconha que proporcionam bem-estar, melhoram sintomas depressivos, diminuem as dores, auxiliam nos tratamentos do autismo infantil, Alzheimer, ansiedade e depressão. “As modulações do THC, canabidiol e outros agentes da planta agem em diversas patologias. Efeitos como diminuição da glicemia é bom para diabéticos”, ratificou.

Segundo a psiquiatra, há mais de 30 mil artigos no mundo sobre uso do óleo de cannabis, mas que a dificuldade está na aquisição do produto, devido aos preços elevados. “A Farmácia Viva viabilizaria a aquisição porque diminuiria o preço, pois o custo da importação é alto e a dificuldade de acesso é grande. Há tratamentos que variam de R$ 300,00 a R$ 2 mil mensais. Fica inviável para mais de 90% da população.” Márcia informou que estudos feitos nos Estados Unidos, comprovaram a eficiência do uso do canabidiol em convulsões, “porque não causa lesões cerebrais, que as pessoas mais temem”. 

Denis Machado, pai de duas crianças, uma menina de seis e um menino de quatro anos (ambos com diagnóstico precoce de autismo), destacou que após o uso da medicação, as melhoras foram consideráveis, tanto no aspecto do contato visual, que aumentou, como no temperamento, com a redução das autoagressões. Ele disse que o grande desafio é vencer a barreira da falta de informações. “Para chegar ao canabidiol, foi necessária uma jornada extenuante, muita pesquisa, enfrentamento de preconceitos com os próprios profissionais da saúde e com a família.” E que foi a partir do seu contato com a Associação Santa Canabis que as coisas mudaram e permitiram a transição do fármaco importado para o uso do óleo completo, feito da planta e com propriedades que resultaram na evolução do tratamento e melhor qualidade de vida para seus filhos.

Augusto Saraiva Ribeiro disse que foi diagnosticado com doença degenerativa e se tratou com a medicina convencional durante 30 anos e que  a patologia continuou evoluindo até sofrer com rigidez muscular, dores, atrofias e movimentos involuntários. “Cheguei a tomar 27 tipos de remédios diferentes e morfina, até que não fez mais efeito e já estava quase vegetativo, quando resolvi buscar outras opções e, com o novo tratamento, venci o preconceito. Quando ouvi que maconha podia ser remédio, não acreditei, mas arrisquei e tive uma mudança significativa. Voltei a falar, caminhar e hoje é uma missão de vida levar informações para as pessoas sobre o tratamento da maconha”, relatou.

Ribeiro contou que “estava desenganado e com a cannabis obtive uma qualidade de vida superior a que tinha antes”. Ele disse que tratamentos de sucesso, como o dele, deveriam ser de interesse público e a um custo mais baixo que os convencionais. Ribeiro afirmou que hoje utiliza exclusivamente derivados de cannabis e que conseguiu habeas corpus para cultivar, plantar, extrair e usar a cannabis como remédio. “Desde 2018 não abria a mão, não podia escrever, nem segurar o garfo e hoje consigo caminhar e ser mais independente.”

Leonardo Bastos, gestor ambiental e técnico de operações da Petrobras disse que é portador de neuropatia periférica, doença adquirida após a realização de uma cirurgia bariátrica e decorrente da perda de vitamina B12. Disse que ao morar em Natal abandonou o uso de medicações para dor a partir do contato com o canabidiol, que amenizou as dores nos pés, a coceira e outros sintomas da enfermidade. Ele lamentou que, ao retornar para o Rio Grande do Sul, tenha perdido a possibilidade de adquirir oficialmente o canabidiol e que, desde dezembro de 2019, aguarda liberação para poder utilizá-lo e, por isso, tem buscado o contato com as associações a fim de obter ajuda.

Relatou também o caso de uma amiga que tem epilepsia e que, com o uso, interrompeu em 100% as crises. Mas reconheceu – e por isso não deu o seu nome – que ela muitas vezes recorre ao mercado clandestino, principalmente do Uruguai, para a aquisição. Afirmou que, em pesquisas, descobriu que o canabidiol é a medicação que mais cresce no mundo. “Com mais de 700% de aumento no consumo, em países como Índia, Canadá e EUA.” E que o produto clandestino muitas vezes não é confiável.

O servidor público municipal Carlos Alberto Kalinovski disse que é da área da saúde e solicitou apoio dos vereadores e da Comissão de Saúde e Meio Ambiente do Legislativo da Capital para que avaliem bem os projetos relacionados ao uso medicinal da cannabis, pois, segundo ele, já há fundos de ações em ativos da indústria farmacêutica de cannabis atentos ao mercado financeiro e ao desenvolvimento deste segmento. Kalinovski sugeriu que a política de saúde municipal seja feita a partir de Práticas Integrativas e Complementares (PICS) com o SUS. “Temos acupuntura com adesão mínima por parte da rede assistencial, assim como a fitoterapia, que não chegam ao grande público. É preciso ampliar o foco da pesquisa para além da medicina estrita, como psicoterapia e psicoterapia espiritual, antropologia e ciência das religiões”, discorreu. Disse ainda que “os próprios vereadores podem destinar recursos, através de emendas impositivas, para consultórios especializados, farmácias vivas, hortas de autocultivo, incluindo a Vigilância em Saúde e a formação complementar da rede de assistência em saúde mental”. 

Shirlei Silva, paciente oncológica desde 2017, em tratamento para o câncer de mama com metástase óssea e muitos efeitos colaterais, destacou que desde março faz uso do canabidiol. “Larguei os remédios para dormir. A insônia é decorrente do tratamento e também, em relação às dores, ele tem mostrado efeitos maravilhosos”, disse. Shirlei insistiu que é preciso combater o preconceito e o desconhecimento, inclusive e principalmente na área da saúde. “Frequento consultórios e hospitais, faz algum tempo e os médicos com quem me trato não têm conhecimento ou fazem questão de não conhecer, por sua formação essencialmente cartesiana”, afirmou. Ela contou que foi atrás de formação e cursos, por conta própria, que em suas pesquisas descobriu que os cursos de medicina não contemplam o uso da cannabis. Que teve apoio da Associação Maria Flor de Marilia (SP) e se surpreendeu com o nível de informação, o que lhe transformou em uma estudiosa dos usos da planta.
Para Shirlei, é mais do que a hora de se investir na formação de mais associações. “São as pequenas associações que irão dar condições de acesso a quem precisa do canabidiol e não sabe por onde começar”.

Médica veterinária, Carla Gregório, disse que começou a utilizar o óleo de cannabis no tratamento de Parkinson, de seu pai, que usava cadeira de rodas e recuperou os movimentos. Ela falou que sua mãe tem reumatismo e também passou a se tratar com cannabis. “Somente em 2020 começamos o tratamento, devido à dificuldade pela demora para conseguir consulta para este tipo de prescrição”. Ela contou que sua mãe usava mais de 20 remédios e que sofria com os efeitos colaterais, inclusive teve problemas renais, devido ao uso de corticoides. Disse também que “a cunhada teve câncer de mama, fez radioterapia, usa cannabis e tem mais qualidade de vida, com menos náuseas do que antes”. Carla afirmou que usou cannabis em animais que tiveram epilepsia, e que diminuíram as convulsões. Ela disse ainda que tem aprendido muito com a Associação Latinoamericana de Veterinária e que é preciso pesquisar e divulgar os resultados para que as pessoas possam ter mais qualidade de vida.

Coordenador da reunião, Idenir Cecchim saudou as vereadoras que participaram da audiência e elogiou o conteúdo das informações que foram disponibilizadas pelas painelistas, assim como dos depoimentos feitos por familiares e pacientes que fazem uso do canabidiol. “São depoimentos de vida, que emocionam a todos nós”, e agradeceu pela oportunidade, parabenizando a todos “pela excelente audiência pública”. O debate foi transmitido pela TV Câmara e pode ser conferido, na íntegra, no canal do Youtube: https://www.camarapoa.rs.gov.br.

As proposições

projeto 178/21 tem como objetivo instituir o Programa Municipal de Uso de Cannabis para Fins Medicinais. A medida resguarda o direito de o paciente receber gratuitamente do município, com base no disposto no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, medicamentos nacionais ou importados a base de cannabis, desde que devidamente autorizado por ordem judicial ou pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Segundo justificativa da proposição, a regulamentação de produtos à base de maconha no Brasil foi aprovada pela Anvisa em dezembro de 2019, mas somente em março de 2020 a resolução entrou em vigor.

O projeto 181/21 pretende estabelecer o Programa Farmácia Viva na Capital, na qual possui viés social, educativo e terapêutico e apresenta diretrizes para que o município se torne polo de referência no desenvolvimento e no uso especializado de plantas medicinais como parte da sua estratégia de saúde. Na justificativa da proposição, o modelo chamado de “farmácia viva” é eficiente e, por isso, está institucionalizado por meio da Portaria nº 886/2010 do Sistema Único de Saúde (SUS). A medida apresenta um rol de resultados positivos, como a promoção da consciência ambiental e uso orgânico sustentável, fortalecimento da agricultura familiar, geração de emprego e renda e inclusão social. O projeto ainda leva em consideração a menor demanda dos serviços de saúde, produção científica, diminuição do uso de medicamentos e do custo para pessoas que dependem de medicamentos fitoterápicos.


O projeto 186/21 visa a promover a pesquisa sobre os usos da planta cannabis que tem, em sua família, espécies como a maconha e o cânhamo, que tem como elementos o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), vistos como psicoativos da planta. Segundo a proposição, são muitos os estudos científicos que comprovam a eficácia da substância no tratamento de diversas doenças, como um produto economicamente valioso e propriedade valorosa de promoção da reparação social e histórica.

Texto

Glei Soares (reg.prof 8577)
Milton Gerson (reg.prof 6539)

Edição

Marco Aurélio Marocco (reg. prof. 6062)