Em fevereiro de 1977, há 37 anos, em plena vigência do regime de exceção imposto pelo golpe civil-militar instalado no país a partir de 1964, dois vereadores da Câmara Municipal de Porto Alegre foram cassados com base no Ato Institucional nº 5, o AI-5, instituído em 13 de dezembro de 1968. Glênio Peres e Marcos Klassmann, ambos pertencentes à bancada do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) partido que fazia oposição à ditadura tiveram seus mandatos e seus direitos políticos cassados pelo governo militar do general Ernesto Geisel (1974-1979).
A cassação de Glênio Peres ocorreu no dia 2 de fevereiro de 1977, dois dias após a sessão solene em que os vereadores eleitos em 15 de novembro de 1976 haviam tomado posse na Câmara Municipal de Porto Alegre, presidida pelo então vereador Cleon Guatimozim, também do MDB. O prefeito de Porto Alegre nomeado pelo governo era Guilherme Socias Villela, hoje vereador. Com o golpe de Estado de 1964, o regime ditatorial impôs ao país o bipartidarismo, em que as forças de oposição ao governo se aglutinavam no MDB, enquanto a Aliança Renovadora Nacional (Arena) abrigava os apoiadores do regime.
Nas eleições municipais de 1976, as oposições obtiveram uma vitória estrondosa. O MDB conquistou a maioria absoluta das cadeiras na Câmara Municipal de Porto Alegre, derrotando a governista Arena na Capital. Ao tomar posse no dia 31 de janeiro de 1977, na presença de autoridades civis e militares, Glênio Peres subiu à tribuna para proferir o Discurso na Terra do Silêncio, denunciando a tortura e a falta de liberdade no país. Glênio, que era o líder da bancada oposicionista na Câmara, também destacou, em seu discurso, a importância dos vereadores na vida política do país.
AI-5
O AI-5 foi o quinto de uma série de decretos emitidos pelo regime militar brasileiro nos anos seguintes ao golpe de 1964 no Brasil. Sobrepondo-se à Constituição de 24 de janeiro de 1967, bem como às constituições estaduais, o AI-5 dava poderes extraordinários ao Presidente da República e suspendia várias garantias constitucionais.
Com a cassação de Glênio Peres, o também emedebista Marcos Klassmann, então com 24 anos, assume a liderança da bancada de oposição na Câmara de Porto Alegre. Ao subir à tribuna como novo líder do MDB, no dia 9 de fevereiro, Klassmann se manifesta em solidariedade a Glênio, reiterando todas as denúncias feitas pelo colega recém-cassado. No dia 15 de fevereiro daquele mesmo ano, o general Ernesto Geisel utiliza novamente o AI-5 para cassar também o mandato e os direitos políticos de Klassmann.
Com dois de seus vereadores cassados, a bancada do MDB na Câmara de Porto Alegre, que tinha 14 cadeiras de um total de 21, passa a ter 12 vereadores, ficando em minoria. Pelas regras impostas pelo regime militar, os parlamentares cassados não poderiam ser substituídos por suplentes. Interinamente, então, o vereador Antonio Cândido Ferreira, mais conhecido por Bagé, assume a liderança do MDB na Câmara de Porto Alegre.
À época, especulava-se em Brasília, de acordo com notícias veiculadas pela imprensa, que, caso o novo líder da oposição não abandonasse a linha de discursos iniciada por Glênio Peres e Marcos Klassmann, o general Ernesto Geisel poderia utilizar novamente o AI-5 para colocar a Câmara de Porto Alegre em recesso. A cassação de Klassmann era a 277ª aplicação do Ato Institucional contra políticos no exercício do mandato desde o início da sua vigência, em 13 de dezembro de 1968.
Ainda em 1977, ano em que o Congresso Nacional foi fechado, a Rádio Continental FM, de Porto Alegre, foi punida por ter divulgado o discurso que resultou na cassação de Glênio Peres. A Continental rádio direcionada ao público jovem nos anos 1970 e que, além da programação musical, veiculava notícias diariamente recebeu a maior multa prevista na legislação para uma rádio Cr$ 43.758,38 (moeda da época), equivalente hoje a cerca de R$ 30 mil.
Os mandatos de Glênio Peres e Marcos Klassmann só foram recuperados no final de 1979, com a entrada em vigência da Lei da Anistia, mas sob intensa polêmica. Quando o então presidente da Câmara de Porto Alegre, vereador Cleon Guatimozim, em sessão que durou apenas alguns minutos, deu-lhes posse diante de um plenário lotado, a Polícia Federal já cercava o prédio, disposta a impedir o ato. Horas antes, o ministro da Justiça, Petrônio Portella, já advertia que a anistia não alcançara os dois vereadores e falava em possibilidade de retrocesso. A Câmara, no entanto, assumiu o risco e restituiu o mandato dos dois vereadores, recompondo a bancada original do MDB, de 14 sobre um total de 21 vereadores.
Anistiados
Em 15 de setembro de 1979, sob o título "Anistiados são soltos em todo país", a Revista Manchete publicava notícia abordando também a polêmica que envolveu a volta de Glênio Peres e Marcos Klassmann à Câmara Municipal:
"Pouco depois do Presidente João Figueiredo sancionar a Lei 6.683, que concedeu anistia aos presos e processados políticos, as prisões do Rio, São Paulo, Porto Alegre, Salvador e Recife abriam seus portões para deixar em liberdade os prisioneiros beneficiados pela medida.
Em Porto Alegre, poucas horas após a sanção de Lei da anistia, os dois únicos políticos cassados no país, Marcos Klassmann e Glênio Perez, ambos do MDB e com mandato ainda sem vigor, puderam reassumir seus cargos na Câmara Municipal. Com o plenário repleto de políticos, jornalistas, policiais e populares e a sessão bastante tumultuada, os vereadores cassados recuperaram seus lugares em cerimônia garantida pelo presidente da Câmara, Cleon Guatimozin.
Com o retorno de Glênio e Klassmann, o MDB domina 14 das 21 cadeiras do legislativo municipal, mas em Brasília a volta dos vereadores cassados foi considerada pelo Ministro da Justiça como um ato de violência. Segundo o Ministro Petrônio Portella a solução do impasse está agora com a justiça do Rio Grande do Sul, pois trata-se de um problema local. Na Assembléia gaúcha, o líder da Arena, Deputado Rubi Diehl, negou que o governo do estado tivesse qualquer intenção de acionar a Câmara Municipal ante a posse dos vereadores cassados. Que eles sejam ou não reintegrados é um assunto que não está em nossas cogitações- afirmou o Deputado Rubi Diehl. Assim, é bastante provável que, pela primeira vez desde 1964, políticos cassados permaneceram exercendo um mandato legislativo."
Em 16 de novembro de 1979, o juiz Mário Rocha Lopes lançou sentença indeferindo o recurso interposto pela Arena, que contestava o retorno dos dois vereadores cassados à Câmara Municipal. O partido oficial da ditadura sustentava que, com a cassação de Glênio Peres e Marcos Klassmann, as duas cadeiras haviam sido extintas, tese não aceita pelo juiz.
Trajetórias
Além de político, Glênio Mathias Peres (1933-1988) foi ator, poeta e reconhecido jornalista. Ele integrou o Movimento Trabalhista Renovador, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em 1963, se elegeu como vereador de Porto Alegre pelo Movimento Democrata Brasileiro (MDB), partido pelo qual exerceu mandato parlamentar por três legislaturas. Defensor intransigente dos direitos humanos e dos princípios democráticos, teve papel relevante na resistência à ditadura militar e no restabelecimento do regime democrático.
Em 2 de fevereiro de 1977, ainda no MDB, foi cassado pela ditadura militar, com base no AI-5, dois dias após seu discurso de posse na Câmara Municipal de Porto Alegre. Em 1979, com o movimento da anistia, recuperou o mandato de vereador e foi um dos fundadores do PDT, partido pelo qual conquistou o seu quarto mandato de vereador de Porto Alegre. Glênio Peres também foi vice-prefeito da Cidade na gestão de Alceu Colares, eleito pelo PDT em 1985.
Como jornalista, trabalhou nos já extintos Diário de Notícias e O Estado do Rio Grande e posteriormente colaborou com O Pasquim e a revista Cadernos do Terceiro Mundo. Faleceu vítima de câncer na capital gaúcha em 27 de fevereiro de 1988. Em sua homenagem, em 1992, foi erigido o Largo Glênio Peres no Centro Histórico da cidade, em frente ao Mercado Público e à Praça XV de Novembro.
Marcos Antônio da Silva Klassmann foi estudante do Colégio Dom João Becker e morador da Vila do IAPI. Líder estudantil, acabou ingressando em 1974 no Setor Jovem do MDB, do qual foi presidente naquele mesmo ano. Klassmann foi presença marcante na resistência à ditadura no Brasil dos anos 1970. Em 1975, ele ganhou notoriedade ao denunciar publicamente a prisão e tortura de 16 jovens partidários do PCB em Florianópolis (SC). Em 1976, o Setor Jovem do MDB decidiu que Klassmann devia concorrer à Câmara Municipal de Porto Alegre. Durante a campanha eleitoral, ele foi detido oito vezes por usar o slogan "Vote contra o governo".
A eleição de 1976 mostrou o crescimento da resistência da população ao governo militar. Eleito com a quarta maior votação naquele ano (12.118 votos), Klassmann se tornou vice-líder do MDB na Câmara de Porto Alegre. A cassação, logo após seu primeiro discurso como líder da oposição, em fevereiro de 1977, produziu impacto na conjuntura política estadual.
Klassmann foi o último cassado pela ditadura militar no Rio Grande do Sul. Com a volta do pluripartidarismo a partir de 1979, após a anistia política, ele empenhou-se na organização do PDT, assumindo papel importante na campanha das diretas. Nessa época, Klassmann trabalhava como assessor de Dilma Rousseff na Secretaria Estadual de Energia e Minas, durante o governo Olívio Dutra (1999/2002). Neste período, liderou um grupo de trabalhistas dissidentes que ingressou no PT. Marcão, como era chamado pelos amigos, morreu em 2005, quando trabalhava com o deputado federal Henrique Fontana (PT) em Brasília.
Texto: Carlos Scomazzon (reg. prof. 7400)
Edição: Claudete Barcellos (reg. prof. 6481)